quinta-feira, 17 de outubro de 2013
Os olhos de Veridiana
A mulher, sentada na sarjeta, sob uma árvore, descalça, pés no chão, vestindo apenas um short surrado e camiseta velha, olhava o corpo inerte ali na sua frente, no asfalto, quase no meio da rua.
Não chorava. Nem parecia sofrer de dor, e se sofria, sofria por si mesma, menos pelo defunto.
Os bombeiros e os paramédicos tentaram evitar a morte do homem. Em vão.
A facada desferida pela mulher, uma só, certeira, no coração, bastou para matá-lo quase que instantaneamente.
Outra mulher chorava a morte do homem, e insultava a agressora. Essa também vestida humildemente, bermuda e camiseta de cores diversas da outra, também descalça, de pés no chão.
Gritaram uma com a outra, trocando ofensas e xingamentos.
A segunda arremessou uma pedra contra a esfaqueadora, que revidou, quase acertando um dos bombeiros.
Foram contidas, ambas.
As duas esqueceram o cadáver jazendo no asfalto.
O sangue já não ocorria debalde os socorros médicos.
A mulher dera um golpe mortal, uma só facada, direto no coração de seu marido.
Descobrira a traição, o marido e a segunda mulher foram surpreendidos no momento do estertor e trocas de carinhos. Rescindiam a sexo.
Acuado, o marido confessou o que era evidente e não tinha como ser negado, afinal, foi pego de surpresa.
A mulher, diante da traição e a infidelidade do marido; se armou com uma faca e um só golpe bastou para atingi-lo mortalmente.
Moveu-se pela raiva, indignação e ódio.
Indignada, raivosa e odiosa, não suportou ver a amante do marido, mais feia que ela própria a esposa.
- Como poderia ele trocar-me por outra muito mais feia, uma qualquer? - Pensou num lampejo, e, decidida, enterrou a faca no peito do marido.
Certamente o sentimento que animou a mulher a matar o marido não foi o amor ferido, ou a impressão de perdimento e perda. Antes, sofria por insulto de ter sido trocada por outra que viu ser mais feia e sem graça.
Não suportando a ideia de que fora trocada por alguém com menos atrativo que ela própria, sofreu imensa dor e não titubeou em golpear o coração do marido.
A outra chorava e gritava pelo amante morto. Não teria mais ninguém para segredar-lhe ao ouvido juras de amor e paixão. Ninguém mais lhe diria a beleza e o charme que só o morto enxergou.
Talvez, chorasse mais por si mesma, no afã egoísta de desamparo, do que propriamente pela sorte do falecido.
Enquanto isso, ali no asfalto, ao lado, o corpo jazia abandonado à insignificância natural de qualquer cadáver.
Os bombeiros, cientes de que o homem morrera, decidiram conter fisicamente as duas mulheres.
A agressora estendeu os braços e ofereceu as mãos aos policiais, para as algemas, passivamente.
O burburinho, vozerio intenso, pessoas se aglomerando ao redor das duas, o corpo sem importância largado na poça de sangue, criava um ambiente irreal, irracional, absurdo.
Em meio a esse tumulto e barulheira, ouvi nitidamente o canto de um pássaro.
O trinado era nítido, melodioso, compassado.
Bem-te-vi... bem-te-vi... te-vi... te-vi... te-vi...
Levantei-me da frente da televisão. A emissora reprisava, pela terceira vez, as cenas, focalizando o morto caído no asfalto, alternando com imagens das mulheres batendo boca e se pegando. Pela terceira vez, reparei no canto do passarinho captado pelo áudio da reportagem jornalística.
Vi a árvore, não vi o pássaro. Ouvi-o sonoramente.
Vi-o, todavia, em pensamento, na copa da árvore, alheio e absorto ao tumulto, à raiva, à morte.
Olhos para o mundo, ver a vida, enxergar as flores, os pássaros, olhos de ver o invisível, de ver o amor apesar da tragédia, de ver e enxergar as cores, e não só o rubro do sangue, ou o marrom-cinzento da tormenta.
Além do horizonte...
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