quarta-feira, 6 de novembro de 2013

O canto da sereia O viajante, assim como eu, sempre retornava àquela casa. No começo de suas visitas, esparsas e breves, procurava pelo morador do casarão. Eu, de meu lado, gostava de perambular pelos arredores do casarão, e descansar na varanda. Às vezes, entrava. Sentava-me na cadeira de banco, de madeira nobre, lisa e lustrosa, à janela. A janela para o mar ficava no lado leste da casa. Janela ampla de largura, erguida a um metro e meio do piso de um salão do andar superior do casarão; salão amplo, semi-arejado, pouco mobiliado, provido de uma única porta que conduzia ao interior da casa. A janela dava para a amplitude do horizonte até onde os olhos podiam enxergar. Da janela podia-se ver ao longe, muito longe, e perder a vista na imensidão verde-azulada do oceano. O sol parecia emergir dos confins de água. Um espetáculo gigantesco, de indescritível beleza: do horizonte distante de água esverdeada, erguer-se a enorme bola no início rósea, depois tingida de vermelho-amarelada, precedida de clarões e luzes muito coloridos, profusão de cores: vermelho, amarelo, violeta, lilases, verdes. A aurora de róseos dedos que surge esplendorosa. Uma vista maravilhosa. Impossível não se deixar contagiar por misterioso e intenso encantamento: o nascer do dia visto daquela janela. Descrição de gravura e imagem admiravelmente belas. Ao longe, até onde se podia ver, as águas e o firmamento pareciam se encontrar num ponto. Nesse ponto de encontro do céu e mar é que surgiam primeiro os clarões dos róseos dedos da manhã madrugadora, em seguida, o sol, enorme. O amanhecer. Milagre mágico composto de simplicidade e complexidade. Evento universal, fenomenal, que interfere em tudo e todos. Entra o dia, sai a noite. Coisa de déjà-vu. Tão acostumados estamos com a repetição desse evento único e estrondoso que nem nos damos conta que o nascer do dia é a Terra, o planeta, completando uma volta na sua rotação constante, ininterrupta, cadenciada e perfeita. É a Terra a girar desde... desde sempre... até quando! Assistimos ao esse espetáculo imponente sem notarmos a grandeza, o mistério, a magia desse fenômeno. O anoitecer é a mesma coisa, entretanto, a magia, o vislumbre e o encantamento, fazem a diferença. A janela ficava a pouco menos de cem metros da beira do morro, recuando como se por medo de despencar da escarpa íngreme de 500 metros de altura. As ondas quebravam barulhentas naquelas pedras. Quando mais fortes e violentas, as ondas produziam brumas orvalhadas e nuvem de partículas de água gelada subia encosta acima para se dissipar a meio do caminho. O morro descia pelo oeste e sul da casa, num declive suave e longo, espraiado numa ravina e logo mais a pouca distância, num pequeno bosque. Eram os fundos e quintais da casa. Ao norte, a alguns quilômetros, a escarpa continuava acentuada, onde o morro contorcia-se numa curva e voltava-se para o interior numa descida branda onde o solo, farto de capim e relva, ostentava saliências rochosas esparsas e irregulares em tamanho e volume. Uma porta do casarão dava para o norte. As outras, todas, para o vale, para o lado oposto do mar e do precipício. Alguns metros adiante da frente da porta, do gramado e no meio do capim, uma parede grossa erguia-se em exibição e amostragem deliberada. Uma parede de dois metros de altura, de pedra lisa, lavrada, lapidada, retilínea, lembrando uma lousa, um quadro-negro. A parede ostentava inscrições gravadas à moda dos oráculos antigos: “Você é feliz? Eu sou feliz!”; “Aproveita o dia!”; “Lembra-te homem que morrerás um dia!”; “A liberdade do homem existe em sua consciência, somente.” “Eu sou eu e minhas circunstâncias.” Essas inscrições estavam à esquerda de quem olhasse para a pedra. Do lado direito, uma única inscrição: “Conhece-te a ti mesmo!” As inscrições estavam gravadas nos dois lados da parede de pedra. Esculpidas com esmero e cuidado e carinho. Eram as inscrições mais lembretes do que advertências; mais apelos e convites, menos normas determinantes, limítrofes. - Toda vez que meus olhos percorrem aquelas letras, questiono a mi mesmo: - Conhecer-ser! Nada mais insólito, difícil, árduo. Perscrutar a própria alma é tarefa assustadora. É preciso traçar mapas dos labirintos, iluminar grutas... para não se perder na imensidão obscura, no lado negro da mente... O casarão era habitado, certamente. Mas, nenhum esforço para observar o habitante era suficiente para o sucesso da empreitada. O habitante-morador era um desconhecido, um estranho, um recluso. Ninguém se atrevia a bater à porta e se convidar ao ingresso. Ninguém se interessava à visitação. O habitante-morador não se expunha, e, portanto, também não proibia a visita ou a aproximação. Aguardava ser visitado, contudo, nada fazia para dar a entender o seu querer, a sua intenção, a sua disposição. Vivia a sua vida, solitária e reclusa. Lá estava ele, na varanda, observando o crepúsculo. Nas manhãs, assistia à janela o dia amanhecer. E assim ia vivendo, displicentemente. - O que ele espera? Do que ele vive? Eu te pergunto, quero saber! - Ele? Apenas vive... Espera você bater à porta e pedir entrada. - E porque ele não me convida? Não me convence a entrar? - Ele fica a esperar por tua iniciativa, por tua disposição, teus passos em direção à mansão. Ele não te convida explicitamente para não te forçar ou convencer. A vontade deve ser isenta de influência alheia. O teu caminho só pode ser percorrido por teus próprios passos. - Não sei. Vou esperar uma oportunidade propícia, aí me reporto ao morador e me mostro. Observaram o casarão por um longo tempo. Imaginaram ambos, à janela, verem o mar. O silêncio cobriu com seu manto escuro os homens, emudecendo palavras e pensamentos. O viajante chegou por ali levado pela curiosidade, por ouvir dizerem estórias e boatos de situações mágicas e misteriosas que aconteciam espontaneamente por aquelas aragens ao redor do casarão. As pessoas vinham, buscavam ver, e quase sempre retornavam ao caminho anterior sem nada encontrarem e ou presenciarem de miraculoso, inexplicável, misterioso. O homem tem propensão ao mistério, à complexidade, ao indescritível. A simplicidade não atrai olhares. O viajante nunca se encontrou com o morador do casarão, mas... também nunca se dispôs a construir pontes sobre o desfiladeiro, a romper um abismo abissal que separa alma-coração-mente, um abismo menor somente ao que separa as pessoas, onde, no fundo, um vale sombrio produz cardos e espinhos perfurantes, lacerantes, altamente lesantes e nocivos. Um dia surgiu do mar um navegante. Trazia no rosto e na pele as marcas e cicatrizes que o longo tempo no oceano entalha a sal, mormaço, queimaduras. E por ali ficou, absorto em suas próprias memórias e lembranças, olhar ataviado sempre perdido em direção ao mar. Olhava sempre o longe e distante horizonte. E seu olhar lacrimejante parecia implorar um surgimento, um aparecimento, um novo porvir. Demorou muito tempo a desatar a voz e soltar as palavras presas no coração. E quando abriu a boca e o som da voz escapuliu como uma torrente de água agitada, contou-nos estórias de seus sonhos e vertigens e miragens e devaneios. Todavia, era a estória de uma vida... Eu ouvi a estória, atentamente. Certa tarde, o crepúsculo apagava mansamente as luzes do dia e cobria o mar com lençol azul-anil de estrelas brilhantes e um luar amarelo intenso de uma enorme lua cheia, arredondada e imensa. Foi nessa noite encantada e mística que ele viu e ouviu a sereia. E, ao vê-la, foi encantado por seu canto. A sereia cantou ao navegante. E o navegante, hipnotizado e enfeitiçado, nunca mais deixou de ouvir a melodia cantada pela sereia. A música invadiu a alma e a mente e o coração do navegante. Encantado, apaixonou-se pela sereia. Ocorreu que a sereia, por seu turno, e como era de seu feitio, também se enamorou. E viveu a sereia, e o navegante, um tórrido romance de amor e paixão. E o amor durou o que durou... o tempo que dura um amor, uma eternidade... uma brevidade duradoura... um instante para sempre. Um dia a sereia sumiu... mergulhou no mar e não mais retornou à superfície. E o navegante chorou! E desde então, ouve, em sua cabeça, o canto da sereia, e fica a olhar o mar, para ver, no fim do horizonte, a silhueta da sereia. Ouvi a estória, e soube de outra verdade, desconhecida do navegante. A sereia, ao encantar, que é sua natureza, também se encanta e se aprisiona à figura que encantou, e se prende àquele, ata-se ao amado e se deixa exaurir na monoplegia do coração. Até que, exaurida, num momento de delírio, foge, quebra os grilhões que a retém, e abandona o amor encantado ao léu, à própria sorte, assim ela, escrava de si mesma e da própria natureza, sofre o mesmo feitiço e o mesmo padecer. Ao entoar seu canto, na primeira vista, a sereia provoca maremotos e tsunamis, ondas gigantescas assolam as praias do continente, porém, a ilha em que a sereia habita, também é devastada e varrida pelas ondas, e se transforma num promontório desértico r rochoso. Às vezes, a própria sereia é arremessada de encontro aos paredões onde as ondas fortes e espumantes se quebram, barulhentamente. E quando isso acontece, refugia-se ferida, quase mortas, nas cavernas escuras ao pé do morro. O navegante não sabe disso, se souber ele que a sereia também sofre, sofrerá ele duplamente. Ou não! Talvez... o saber do sofrimento alheio é resfôlego, alívio e abrandamento da revolta e da autocomiseração, quando falta empatia e resiliência. É preciso ser navegante dos sete mares para sorrir ao infortúnio e suportar o canto da sereia sem o aprisionamento fatal que fere de morte o coração dos enamorados. Melhor ouvir os pássaros e o vento! Ívor Barretti. escritor

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Os olhos de Veridiana A mulher, sentada na sarjeta, sob uma árvore, descalça, pés no chão, vestindo apenas um short surrado e camiseta velha, olhava o corpo inerte ali na sua frente, no asfalto, quase no meio da rua. Não chorava. Nem parecia sofrer de dor, e se sofria, sofria por si mesma, menos pelo defunto. Os bombeiros e os paramédicos tentaram evitar a morte do homem. Em vão. A facada desferida pela mulher, uma só, certeira, no coração, bastou para matá-lo quase que instantaneamente. Outra mulher chorava a morte do homem, e insultava a agressora. Essa também vestida humildemente, bermuda e camiseta de cores diversas da outra, também descalça, de pés no chão. Gritaram uma com a outra, trocando ofensas e xingamentos. A segunda arremessou uma pedra contra a esfaqueadora, que revidou, quase acertando um dos bombeiros. Foram contidas, ambas. As duas esqueceram o cadáver jazendo no asfalto. O sangue já não ocorria debalde os socorros médicos. A mulher dera um golpe mortal, uma só facada, direto no coração de seu marido. Descobrira a traição, o marido e a segunda mulher foram surpreendidos no momento do estertor e trocas de carinhos. Rescindiam a sexo. Acuado, o marido confessou o que era evidente e não tinha como ser negado, afinal, foi pego de surpresa. A mulher, diante da traição e a infidelidade do marido; se armou com uma faca e um só golpe bastou para atingi-lo mortalmente. Moveu-se pela raiva, indignação e ódio. Indignada, raivosa e odiosa, não suportou ver a amante do marido, mais feia que ela própria a esposa. - Como poderia ele trocar-me por outra muito mais feia, uma qualquer? - Pensou num lampejo, e, decidida, enterrou a faca no peito do marido. Certamente o sentimento que animou a mulher a matar o marido não foi o amor ferido, ou a impressão de perdimento e perda. Antes, sofria por insulto de ter sido trocada por outra que viu ser mais feia e sem graça. Não suportando a ideia de que fora trocada por alguém com menos atrativo que ela própria, sofreu imensa dor e não titubeou em golpear o coração do marido. A outra chorava e gritava pelo amante morto. Não teria mais ninguém para segredar-lhe ao ouvido juras de amor e paixão. Ninguém mais lhe diria a beleza e o charme que só o morto enxergou. Talvez, chorasse mais por si mesma, no afã egoísta de desamparo, do que propriamente pela sorte do falecido. Enquanto isso, ali no asfalto, ao lado, o corpo jazia abandonado à insignificância natural de qualquer cadáver. Os bombeiros, cientes de que o homem morrera, decidiram conter fisicamente as duas mulheres. A agressora estendeu os braços e ofereceu as mãos aos policiais, para as algemas, passivamente. O burburinho, vozerio intenso, pessoas se aglomerando ao redor das duas, o corpo sem importância largado na poça de sangue, criava um ambiente irreal, irracional, absurdo. Em meio a esse tumulto e barulheira, ouvi nitidamente o canto de um pássaro. O trinado era nítido, melodioso, compassado. Bem-te-vi... bem-te-vi... te-vi... te-vi... te-vi... Levantei-me da frente da televisão. A emissora reprisava, pela terceira vez, as cenas, focalizando o morto caído no asfalto, alternando com imagens das mulheres batendo boca e se pegando. Pela terceira vez, reparei no canto do passarinho captado pelo áudio da reportagem jornalística. Vi a árvore, não vi o pássaro. Ouvi-o sonoramente. Vi-o, todavia, em pensamento, na copa da árvore, alheio e absorto ao tumulto, à raiva, à morte. Olhos para o mundo, ver a vida, enxergar as flores, os pássaros, olhos de ver o invisível, de ver o amor apesar da tragédia, de ver e enxergar as cores, e não só o rubro do sangue, ou o marrom-cinzento da tormenta. Além do horizonte...

sábado, 24 de agosto de 2013

A agenda... Meu vôo chegara no horário previsto. Eu dispunha de tempo. Gosto de viajar com folga nos horários de compromissos, principalmente quando o desembarque é no aeroporto de Guarulhos. Curto perambular pelos saguões e apreciar o vai-e-vem de pessoas chegando e partindo. É um desfilar eclético, colorido, multifacetário, exótico, diversificado, plural. Figuras pitorescas, umas simples outras grotescas, todo tipo de gente desfila por ali. Gosto de observá-las, e imaginar seus percalços e sonhos e desilusões e ilusões. Naquela manhã não foi diferente. O movimento de pessoas era intenso. Despreocupado, fui ao banheiro, e enquanto me arrumava e me recompunha da viagem, observei o camarada ao meu lado. Era um homem novo, perto ou passando dos trinta, estatura mediana, boa fisionomia, gestos concatenados e coordenados. Trazia no olhar inquietante intranqüilidade e perceptível perturbação. Demonstrava certo nervosismo e preocupação. Esse homem lavava o rosto e era aguardado por outro. Esse outro homem sisudo, sério, impaciente, irritado, mais velho, parecia exercer certo domínio e ascensão sobre o outro. Os olhares entre eles não eram amistosos, antes, desconfiados e distantes. A um sinal do mais velho, o que lavava o rosto se apressou e o seguiu. Tive a certeza de vislumbrar tristeza nos olhos do mais novo. A porta do banheiro fechou-se atrás dos dois homens. Cuidei de mim e por um instante esqueci-me deles. Todavia, minha atenção voltou-se para um objeto sobre a pia, parecia uma agenda pequena. Minha curiosidade alegrou-se com a oportunidade de manifestar-se e expandir-se em meu espírito. A curiosidade sorri ansiosa nos minutos que precedem o desvelar de um segredo, ou na possibilidade de desvendar mistérios. Apossei-me da agenda. Certamente fora o homem que lavava o rosto que a esquecera sobre a pia. Rememorei os movimentos dos homens e deduzi a hipótese de que a agenda fora deixada propositadamente, quase às escondidas, pelo mais novo, quando saiu seguindo o homem mais velho que o esperava. Abri a capa. Ricardo Rogério Montalban, o nome escrito na primeira folha, à mão, em tinta azul. Folheei aleatoriamente as folhas da agenda, notei que algumas folhas estavam escritas à mão, em espanhol castelhano. Interessado, guardei a agenda no bolso direito do paletó e sai no encalço dos homens. Não os avistei. Naquele dia, não mais me preocupei com esse episódio. A curiosidade perscrutadora recolheu-se aos meandros de minha alma. Somente alguns dias depois, vim a me ocupar com a agenda. - Vamos ver o que se trata... Sem pressa, e com bastante acuidade, comecei a traduzir as anotações daquele caderninho. Era uma espécie de narrativa do tipo confitente, escrita na forma de diário. A narrativa do texto reteve minha total atenção. “Sou de Castrídia. Cursei medicina na capital. Há um ano terminei e tencionava fazer especialização na área da pediatria. Meu estágio prosseguia, eu dava em um ambulatório de uma vila satélite da capital. Na ilha, o sistema de saúde é todo estatal. Não há plano de saúde privado. A coisa é ruim, mas não é de toda péssima. A miséria e a pobreza assolam o mundo todo, não somente minha terra. Globalizada é a fome, a desnutrição, a carência de recursos financeiros, a carestia dos produtos de consumo primário. A falta de recursos materiais, tecnológicos, instrumentistas, para a prática de uma medicina curativa tradicional , existe e é igual no mundo todo. Uma boa gestão política no campo da saúde pública não é atrativa a nenhum governo porque o retorno financeiro e econômico é mínimo ou nenhum. O benefício somente será perceptível em longo prazo, e sentido e utilizado pela geração futura. Com a educação é a mesma coisa. Fui recrutado para prestar serviços médicos noutro país. O governo me recrutou. O recrutamento é como o serviço militar, você age submisso e calado, ou diz por que não fará... e aí, certamente uma punição lhe será imposta. O Estado tem muitas mãos, longas e crispadas e pesadas mãos. Vou, assim como outros tantos, como recrutado, para prestar serviços médicos por um ano, como se fosse um serviço militar. Esse trabalho de campo servirá como estágio em meu curso de doutorado. Irei ao estrangeiro, país estranho, desconhecido, onde não tenho vínculo afetivo algum. O País de lá pagará mensalmente ao meu governo - por meu trabalho como médico do serviço público - um valor que não me será repassado integralmente. Terei direito a somente vinte por cento do rendimento mensal, oitenta por cento ficará com meu governo. Aliás, o contratado, nesse caso, não é o profissional-médico, o individuo, mas o meu governo, e contratante, o outro governo. Repito: fui recrutado, convocado... eu e muitos... - ninguém foi convidado. Não decido de mim, meu governo decide por mim. É obrigação cívica, imposição. E manter-me-ei, lá, para onde irei, submisso, longe de casa, porque, ficarão em minha terra meus parentes, minha família, meus pais. A prisão, a perseguição, a retaliação, são sempre alternativas de persuasão. Trabalharei a contragosto, sem salário, até porque o pagamento será enviado ao meu governo, que me repassará quantia bem menor do que o valor pago pelo contratante. Meu governo será meu feitor. Vou ao Brasil. Não sei onde vou trabalhar. Serei mandado - enviado, disseram - a lugar a ser escolhido pelos agentes brasileiros. Não há opção de escolha para o recrutado. Seremos recepcionados por agentes do governo, e levados a um campo de treinamento do exército, a um alojamento provisório, de onde seremos mandados aos locais onde ficaremos por um ano, atendendo a população carente, como médico do serviço público. Terminado o prazo contratual, seremos mandados de volta, dizem. ... (...) Interrompi a tradução e a transcrição. Lembrei-me que aqui, em meu Brasil brasileiro, já houve capitães-do-mato, gatos, capatazes, feitores, escravidão, já houve todo tipo de exploração de mão-de-obra. Agora, um governo estrangeiro será oficialmente um atravessador de prestação de serviço público essencial, e será pago por isso... um feitor ... e o médico... bem, o médico nem pagamento terá, seu governo de origem é que lhe repassará a parte que couber... Fechei a agenda. A curiosidade deu lugar ao azedume da decepção. Lembrei-me de um texto histórico, formal, lavrado por tabelião, e com força legal: leilão de escravos na feira central do Rio de Janeiro... Ívor Barretti. escritor 24/8/2013.

domingo, 4 de agosto de 2013

O relógio e o tempo... Ao entrar naquela relojoaria, tive a impressão de retroceder aos anos 20, e me alegrei com a sensação de viagem ao antigo, ao passado. Balcão de madeira, antigo, velho, surrado, denotando anos e décadas de trabalho, de uso e de prestatividade servível, enegrecido; ainda resistente e durável. As prateleiras eram iguais o balcão, antigas, e forte madeira enegrecida, rija, contrastando com os cristais e vidros e uma infinidade de objetos expostos. Estavam as prateleiras repletas de relógios. Relógios de vários tipos, modelos, cores, padrão. Relógios antigos, novos, usados, sem uso, uma quase centena de relógios. E cada um deles mostrava um horário diferente. Estavam todos parados. Pararam o funcionamento em horas diversas. Nenhum relógio repetia a hora ou minuto de outro. Nenhum marcava o mesmo tempo, a mesma hora, o minuto e segundo. Nenhum desses relógios funciona, todavia, todos marcam o tempo certo de algum lugar do mundo. Todos estão, pois, certos, embora errados. O certo e o errado dos relógios correspondem ao conceito do observador. Cada relógio parado está a marcar, naquele exato momento, a hora certa em algum determinado fuso horário, de alguma parte do mundo. E, mesmo aqui, no meu tempo, os relógios parados marcam cada um deles, um momento do dia, e nesse momento, cada relógio está certo com a hora presente ou passada. Mas, esse acerto ocasional e inapropriado, também depende dos olhos do observador, também está na resolução conceitual de quem olha os relógios. Certo e errado é, no caso, questão de ponto de vista, e nada tem a ver com o conceito de certo e errado no campo da moral e da ética. Até porque o certo e errado da moral e da ética não se vincula aos olhares do observador transeunte, mas de um consenso geral, cultural, coletivo. O certo e errado dos relógios da vitrine e das prateleiras não é um conceito dualista, mas apenas o olho do visitante. Pensei no quanto o tempo pode ser tirano quando ignorado, repudiado, menosprezado. Cabe ao tempo impor bengala e chapéu. O escoar afunilado e estreito das areias da ampulheta é o mesmo por onde se esvai a presteza e desenvoltura física. A jovialidade é sensação, emoção, portanto, é qualidade da alma. O tempo se resume, então, a um acidente ou incidente físico-espacial-dimensional. Nenhum relógio ali, naquela relojoaria, estava certo. Nenhuma marcava a minha hora, marcava outras horas, a horas de qualquer um, menos a minha e a do relojoeiro. Gostamos tanto de marcar e cronometrar o tempo... E não nos damos conta de viver o tempo. Paguei ao relojoeiro. Apanhei meu relógio e sai. Deparei com o vai-e-vem das pessoas, apressadas, envolvidas em mil e um e tantos motivos e assuntos pessoais, individuais, íntimos. O dia ensolarado, agradável e fresco, exibia um céu azul e convidava à contemplação. Sentar à calçada, ao lado de uma mesa de bar, vendo as pessoas irem e virem como formigas num formigueiro, era algo realmente aprazível. Contemplar a vida e as pessoas. E aproveitar o tempo e o êxtase contemplativo e escarafunchar a alma, cartografar os mais recônditos vales e despenhadeiros e mapear os intrínsecos labirintos da alma, parecia uma boa pedida. Introspecção e viagem sentimental em busca de si mesmo. - Há algo mais estranho do que uma relojoaria repleta de relógios parados, marcando horas e minutos e segundos diversos, diferentes? Caminhei pela calçada, rumo ao meu mundo, à minha realidade, absorto na sensação de individualidade e pertencimento à vida das pessoas. Afinal, algo incompreensível era sentido e constatável: alguma coisa, um liame misterioso, unia-me à figura deprimente que jazia encostada à parede da loja: uma mulher pedinte, esfarrapada e largada na calçada, a esmolar, e não era só uma ligação ocasional resultante das poucas palavras que trocamos, eu e a mendiga, ou das míseras moedas que depus nas mãos sujas e encardidas da andarilha. Era algo mais, muito maior, de enigmática complexidade e obscuridade. Passados poucos fôlegos, terei me distanciado daquela pessoa em andrajos, o suficiente para livrar-me do incômodo de sentir-me responsável por aquela vida largada à calçada. Em direção ao instante seguinte, taciturno, segui! Ívor Barretti. escritor

domingo, 30 de junho de 2013

 O labirinto e o viajante...
  
As batidas na porta romperam o silêncio que se estendia já há algumas horas.
Batidas cadenciadas, pausadas e rítmicas, a pedirem atenção e obséquio.
Larguei a caneca de café ainda fumegante sobre a mesa, e contrariado, dirigi-me à porta.
- É estranho como a importunação é inoportuna! Pensei.  Quando quero e desejo quietude e mudez o telefone não pára de chamar, a campainha toca insistentemente, e tudo são barulho e som e importunação e contrariedade. Quando sinto falta da presença ou voz de alguém, qualquer um, ninguém fala, ninguém vem, ninguém liga, procura ou dá notícia. Quando busco introspecção encontro sons e vozes e algazarra; quero música e nem o vento sibila; nada soa, ressoa, ecoa, nem os cachorros ladram pela rua.
As batidas intercalavam compassadamente.
Abri a porta com cuidado tal a denunciar contragosto e mau humor.
Olhei a figura bizarra, ali estática, imóvel, de pé, na calçada.
Parecia querer demonstrar enfaticamente a precariedade notória do seu ser. Magro, esquelético, mal vestido, feio, expondo aos olhos carência e fome e desprezo.
Ancorei meus ossos no umbral da porta e pus-se a observar a figura exótica daquele indivíduo, personagem saltada de um gibi de terror, um sujeito sem prumo. Fosse noite escura, chuvosa, de trovoadas e relâmpagos, aquela pessoa pareceria  assombração.
Sem mais nem menos, sem preâmbulo ou indagação, interpelação ou apresentação, o indivíduo olhou-me e abriu a boca.
- Preciso do mapa da minha alma! Disse.
- Como? Retruquei.
- Preciso do mapa da minha alma. O mapa me mostrará por onde devo seguir, para onde ir.
Estarreci! E continuei ouvindo.
- Preciso do mapa da minha alma para saber onde estou.
- Minha cabeça é vazia... não tenho neurônios... É tudo oco... Aí, quando eu penso me transporto... vou para outros lugares, outros mundos, que nem conheço... por isso, preciso do mapa de minha alma.
- Nunca sei se estou aqui ou lá... quando eu tiver o mapa de minha alma então me encontro...
Sorri, sem desdém.
Indaguei ao sujeito como poderia ajudá-lo, enquanto pensava comigo mesmo: - quem é o louco, ou quem é mais louco? Afinal, quem não é louco?
- Que louco engraçado esse. Tudo o que quer é o mapa da alma. Explorar-se, interiorizar-se, conhecer-se, desnudar-se.
Muito interessante.
- Onde pretende achar o mapa da tua alma? Perguntei-lhe.
- Não sei. Se soubesse não estaria procurando nem precisando, ia buscar e pegava. Respondeu-me ele, rindo.
- Tem lógica, pensei.
Pediu-me pão e roupas.
Dei-lhe, e ele seguiu seu caminho.
Certamente continuará precisando do mapa de sua alma.
E terá consciência disso, apesar de toda a loucura.
Olhando o homem caminhar pela calçada, refleti: - E nós? Nós nos achamos e nos colocamos como bússola de muitos e dos outros; mas como aquele louco, também nós não temos o mapa de nossa alma.
Mera ilusão é a certeza que se têm da vida. Tudo na vida é frágil e tênue e passageiro. Ora é ilusão, apreensão, sensação, emoção; noutra ocasião já é recordação, estímulo, ordenação, coordenação.  
Muitas vezes, nem mapa temos. O louco, ao menos, segundo ele próprio dissera, já havia desbravado as terras longínquas da alma, e depois da aventura cartográfica, traçado e desenhado um mapa.
Perdera o mapa, é certo, mas, já tinha a consciência territorial do próprio ser, suas confrontações, limites e fronteiras.
Precisava do mapa para não ultrapassar as fronteiras e os limites.
Tomara realmente ele encontre o mapa da própria alma, e se encontre, transfigure-se; se transforme de homem-zumbi em homem-pessoa.
O homem sumiu na distância, pela rua.
Entrei.
Fechei a porta atrás de mim.
Ri... ria muito... divertidamente... dele... da loucura, da insignificância, e de minha própria ignorância!
Ívor Barretti.
   escritor              

domingo, 23 de junho de 2013



O GARIMPEIRO... A JÓIA... A FLOR...
  
- A jóia é apenas uma pedra que foi valorada acima da média e das outras pedras... dizia o garimpeiro enquanto golpeava a rocha com sua picareta curta, pontuda e dura.
- Mas... quem valorou a jóia?... quem a dotou de qualidade, preciosidade, valoração? A natureza? O acaso? O acaso... sim,  talvez! Porque nem todo carvão vira diamante! Ou a própria jóia, por sua própria essência e raridade? O tempo? Ou unicamente o homem, e sua vaidade, orgulho, ostentação, ambição, enfim, o homem e suas virtudes e defeitos?  
- Ou tão só a escassez;  por ser escassa e não abundante como as outras pedras? É por causa de seu brilho e reluzência? Ou porque as outras pedras, comuns e iguais e abundantes, são opacas, sem brilho, sem fulgor? Cintilação?
Dizia essas coisas o garimpeiro à sua alma, enquanto maltratava a rocha, no escuro, no mais profundo buraco escavado ao pé do morro.
A picareta agredia a montanha, rasgava as entranhas da terra.
O mineiro resolveu, depois de muito cansaço e suor, abandonar o garimpo.
Voltou à superfície.
Demorou a acostumar-se com a luz.
O sol, e seu brilho, feriam-lhe os olhos.
Custou a enxergar, com olhos abertos, o sol, o dia, o brilho e a luz, os montes, as árvores, os pássaros, os vales, as flores, as cores.
Só conhecia a escuridão da caverna, e quando saia do buraco fundo, já era noite; e mesmo quando clara por conta da lua, a noite ainda é escura, é sombra; mulher travessa que se finge menina e se cobre toda com manto de estrelas e luar para não ver, ciumenta, a luz do dia.
Depois que os olhos aprenderam a ver e enxergar o dia, e a luz, e as cores, e as flores, e as árvores, e os montes, e os vales, e os rios, e os mares; fez-se jardineiro.
Plantou flores!
Canteiros de flores e jardins.
E a flor, apesar de perene e passageira, frágil e delicada, agradava mais ao viajante que a gema rara.
Nenhum viajante visitava a mina. Raramente algum curioso desavisado entrava na gruta para vasculhar cascalhos atrás de uma jóia esquecida. Ilusão de criança: ganhar presentes, ilusão de adulto: ganhar prêmios e sorteios; vencer o jogo.
A maioria dos viajantes se detinha nos canteiros do jardim.
Os jardins floridos enfeitavam a montanha. O morro ganhara vida.
Árvores brotaram. Os frutos atraíram pássaros e animais e vida.
O tempo fez o jardineiro esquecer-se das agruras da mina, O morro, agora belo e imponente, perdera a imagem de opressão e dor.
O cinzento e negro deu lugar a cores vivas.
- As flores voam no morro! Dizia o jardineiro, referindo-se às nuvens de borboletas coloridas que esvoaçavam pelo ar.

Ívor Barretti.
   escritor              

segunda-feira, 27 de maio de 2013

O VENTO E A  FLOR



O vento - nem tanto ruidoso quanto o martelar bigorna – canto da araponga – antes melodioso tal como o assovio de flauta doce  - de tempo em tempo brindava a flor com o frescor de brisa matinal, salpicando gotículas de orvalho, e dela, da flor, se apropriando perfume e odor.
A flor, ingênua, nem sentia a expropriação de seu perfume, aliás, exalava o aroma ao ar sem se dar conta do ato, da atitude, da ação e resultado.
Ao vento, propagador do perfume da flor ao mundo, era atribuído a boa fama de gentil, obsequioso e altruísta, elemento benfazejo que espalhava aromas agradáveis, como se fossem seus os aromas, ou de sua própria essência.
À flor restava a presciência da própria beleza e encanto e cor.
Um dia, o vento, meio emburrado, cismado, chateado da vida, sem saber bem o porquê, disse à flor:
- Sou o vento! Nada me prende, e eu não me prendo a nada nem a ninguém. Não me prendo a coisa alguma, nem mesmo a você, muito menos a você.
E foi-se embora, levando consigo o perfume da flor, deixando-a imersa nos próprios pensamentos e na frase dita aos ventos.
A flor entristecida, acabrunhada e melancólica, perguntou ao pássaro:
- Se o vento não se prende a nada nem a ninguém, muito menos a mim... e o amor que lhe sinto? E o amor que ele diz ter por mim?
O pássaro respondeu:
- Sentir livre e solto é a natureza do vento... ele nem é livre, nem é solto, porque obedece a certas regras rígidas e imutáveis... e se mesmo assim não fosse ele obediente a determinação e lei... estaria preso à própria essência e à ideia de livramento e liberdade.
- Mas deixe ao vento a impressão e sensação de liberdade, até porque o amor não prende, liberta...
- Deixe ao vento a sensação de que é livre... de que pode ir e vir a seu bel-prazer, e ele simplesmente se esquecerá de ir embora.
A flor empertigou-se novamente, aprumou haste e caule e rama, e abriu-se risonha à vida.
Passados poucos fôlegos da natureza – um dia... uma noite... outro dia... outra noite – ei-lo de volta: o vento!
Voltou, melhor, retornou, como se não tivesse ido.
Como sempre faceiro, agitado, refrescante.
E de novo cortejou a flor, respingando nela as frescas gotas do orvalho, para logo sair esvoaçante, espalhando o perfume da flor pelo campo.
E assim continuou o vento a ir e vir, soberano e altivo, cheio de si e de sua liberdade.
E a flor, não mais triste, não mais consternada, figura em riste, exibindo-se ao sol, senhora de si, alegre com a vida, sentia o vento ir e vir, solto e livre no próprio pensamento, mas, preso à flor desde o início até o momento.
A flor, feliz, certa de que o vento existe preso a ela, e o vento, alegre e contente, ciente de ser livre e solto, não preso a ninguém!
E assim seguia a vida, no bosque, no campo, por entre rios, e montes, e pontes: uma longa avenida.       
  

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              Ívor Barretti.
                 Escritor.