sábado, 24 de agosto de 2013

A agenda... Meu vôo chegara no horário previsto. Eu dispunha de tempo. Gosto de viajar com folga nos horários de compromissos, principalmente quando o desembarque é no aeroporto de Guarulhos. Curto perambular pelos saguões e apreciar o vai-e-vem de pessoas chegando e partindo. É um desfilar eclético, colorido, multifacetário, exótico, diversificado, plural. Figuras pitorescas, umas simples outras grotescas, todo tipo de gente desfila por ali. Gosto de observá-las, e imaginar seus percalços e sonhos e desilusões e ilusões. Naquela manhã não foi diferente. O movimento de pessoas era intenso. Despreocupado, fui ao banheiro, e enquanto me arrumava e me recompunha da viagem, observei o camarada ao meu lado. Era um homem novo, perto ou passando dos trinta, estatura mediana, boa fisionomia, gestos concatenados e coordenados. Trazia no olhar inquietante intranqüilidade e perceptível perturbação. Demonstrava certo nervosismo e preocupação. Esse homem lavava o rosto e era aguardado por outro. Esse outro homem sisudo, sério, impaciente, irritado, mais velho, parecia exercer certo domínio e ascensão sobre o outro. Os olhares entre eles não eram amistosos, antes, desconfiados e distantes. A um sinal do mais velho, o que lavava o rosto se apressou e o seguiu. Tive a certeza de vislumbrar tristeza nos olhos do mais novo. A porta do banheiro fechou-se atrás dos dois homens. Cuidei de mim e por um instante esqueci-me deles. Todavia, minha atenção voltou-se para um objeto sobre a pia, parecia uma agenda pequena. Minha curiosidade alegrou-se com a oportunidade de manifestar-se e expandir-se em meu espírito. A curiosidade sorri ansiosa nos minutos que precedem o desvelar de um segredo, ou na possibilidade de desvendar mistérios. Apossei-me da agenda. Certamente fora o homem que lavava o rosto que a esquecera sobre a pia. Rememorei os movimentos dos homens e deduzi a hipótese de que a agenda fora deixada propositadamente, quase às escondidas, pelo mais novo, quando saiu seguindo o homem mais velho que o esperava. Abri a capa. Ricardo Rogério Montalban, o nome escrito na primeira folha, à mão, em tinta azul. Folheei aleatoriamente as folhas da agenda, notei que algumas folhas estavam escritas à mão, em espanhol castelhano. Interessado, guardei a agenda no bolso direito do paletó e sai no encalço dos homens. Não os avistei. Naquele dia, não mais me preocupei com esse episódio. A curiosidade perscrutadora recolheu-se aos meandros de minha alma. Somente alguns dias depois, vim a me ocupar com a agenda. - Vamos ver o que se trata... Sem pressa, e com bastante acuidade, comecei a traduzir as anotações daquele caderninho. Era uma espécie de narrativa do tipo confitente, escrita na forma de diário. A narrativa do texto reteve minha total atenção. “Sou de Castrídia. Cursei medicina na capital. Há um ano terminei e tencionava fazer especialização na área da pediatria. Meu estágio prosseguia, eu dava em um ambulatório de uma vila satélite da capital. Na ilha, o sistema de saúde é todo estatal. Não há plano de saúde privado. A coisa é ruim, mas não é de toda péssima. A miséria e a pobreza assolam o mundo todo, não somente minha terra. Globalizada é a fome, a desnutrição, a carência de recursos financeiros, a carestia dos produtos de consumo primário. A falta de recursos materiais, tecnológicos, instrumentistas, para a prática de uma medicina curativa tradicional , existe e é igual no mundo todo. Uma boa gestão política no campo da saúde pública não é atrativa a nenhum governo porque o retorno financeiro e econômico é mínimo ou nenhum. O benefício somente será perceptível em longo prazo, e sentido e utilizado pela geração futura. Com a educação é a mesma coisa. Fui recrutado para prestar serviços médicos noutro país. O governo me recrutou. O recrutamento é como o serviço militar, você age submisso e calado, ou diz por que não fará... e aí, certamente uma punição lhe será imposta. O Estado tem muitas mãos, longas e crispadas e pesadas mãos. Vou, assim como outros tantos, como recrutado, para prestar serviços médicos por um ano, como se fosse um serviço militar. Esse trabalho de campo servirá como estágio em meu curso de doutorado. Irei ao estrangeiro, país estranho, desconhecido, onde não tenho vínculo afetivo algum. O País de lá pagará mensalmente ao meu governo - por meu trabalho como médico do serviço público - um valor que não me será repassado integralmente. Terei direito a somente vinte por cento do rendimento mensal, oitenta por cento ficará com meu governo. Aliás, o contratado, nesse caso, não é o profissional-médico, o individuo, mas o meu governo, e contratante, o outro governo. Repito: fui recrutado, convocado... eu e muitos... - ninguém foi convidado. Não decido de mim, meu governo decide por mim. É obrigação cívica, imposição. E manter-me-ei, lá, para onde irei, submisso, longe de casa, porque, ficarão em minha terra meus parentes, minha família, meus pais. A prisão, a perseguição, a retaliação, são sempre alternativas de persuasão. Trabalharei a contragosto, sem salário, até porque o pagamento será enviado ao meu governo, que me repassará quantia bem menor do que o valor pago pelo contratante. Meu governo será meu feitor. Vou ao Brasil. Não sei onde vou trabalhar. Serei mandado - enviado, disseram - a lugar a ser escolhido pelos agentes brasileiros. Não há opção de escolha para o recrutado. Seremos recepcionados por agentes do governo, e levados a um campo de treinamento do exército, a um alojamento provisório, de onde seremos mandados aos locais onde ficaremos por um ano, atendendo a população carente, como médico do serviço público. Terminado o prazo contratual, seremos mandados de volta, dizem. ... (...) Interrompi a tradução e a transcrição. Lembrei-me que aqui, em meu Brasil brasileiro, já houve capitães-do-mato, gatos, capatazes, feitores, escravidão, já houve todo tipo de exploração de mão-de-obra. Agora, um governo estrangeiro será oficialmente um atravessador de prestação de serviço público essencial, e será pago por isso... um feitor ... e o médico... bem, o médico nem pagamento terá, seu governo de origem é que lhe repassará a parte que couber... Fechei a agenda. A curiosidade deu lugar ao azedume da decepção. Lembrei-me de um texto histórico, formal, lavrado por tabelião, e com força legal: leilão de escravos na feira central do Rio de Janeiro... Ívor Barretti. escritor 24/8/2013.

domingo, 4 de agosto de 2013

O relógio e o tempo... Ao entrar naquela relojoaria, tive a impressão de retroceder aos anos 20, e me alegrei com a sensação de viagem ao antigo, ao passado. Balcão de madeira, antigo, velho, surrado, denotando anos e décadas de trabalho, de uso e de prestatividade servível, enegrecido; ainda resistente e durável. As prateleiras eram iguais o balcão, antigas, e forte madeira enegrecida, rija, contrastando com os cristais e vidros e uma infinidade de objetos expostos. Estavam as prateleiras repletas de relógios. Relógios de vários tipos, modelos, cores, padrão. Relógios antigos, novos, usados, sem uso, uma quase centena de relógios. E cada um deles mostrava um horário diferente. Estavam todos parados. Pararam o funcionamento em horas diversas. Nenhum relógio repetia a hora ou minuto de outro. Nenhum marcava o mesmo tempo, a mesma hora, o minuto e segundo. Nenhum desses relógios funciona, todavia, todos marcam o tempo certo de algum lugar do mundo. Todos estão, pois, certos, embora errados. O certo e o errado dos relógios correspondem ao conceito do observador. Cada relógio parado está a marcar, naquele exato momento, a hora certa em algum determinado fuso horário, de alguma parte do mundo. E, mesmo aqui, no meu tempo, os relógios parados marcam cada um deles, um momento do dia, e nesse momento, cada relógio está certo com a hora presente ou passada. Mas, esse acerto ocasional e inapropriado, também depende dos olhos do observador, também está na resolução conceitual de quem olha os relógios. Certo e errado é, no caso, questão de ponto de vista, e nada tem a ver com o conceito de certo e errado no campo da moral e da ética. Até porque o certo e errado da moral e da ética não se vincula aos olhares do observador transeunte, mas de um consenso geral, cultural, coletivo. O certo e errado dos relógios da vitrine e das prateleiras não é um conceito dualista, mas apenas o olho do visitante. Pensei no quanto o tempo pode ser tirano quando ignorado, repudiado, menosprezado. Cabe ao tempo impor bengala e chapéu. O escoar afunilado e estreito das areias da ampulheta é o mesmo por onde se esvai a presteza e desenvoltura física. A jovialidade é sensação, emoção, portanto, é qualidade da alma. O tempo se resume, então, a um acidente ou incidente físico-espacial-dimensional. Nenhum relógio ali, naquela relojoaria, estava certo. Nenhuma marcava a minha hora, marcava outras horas, a horas de qualquer um, menos a minha e a do relojoeiro. Gostamos tanto de marcar e cronometrar o tempo... E não nos damos conta de viver o tempo. Paguei ao relojoeiro. Apanhei meu relógio e sai. Deparei com o vai-e-vem das pessoas, apressadas, envolvidas em mil e um e tantos motivos e assuntos pessoais, individuais, íntimos. O dia ensolarado, agradável e fresco, exibia um céu azul e convidava à contemplação. Sentar à calçada, ao lado de uma mesa de bar, vendo as pessoas irem e virem como formigas num formigueiro, era algo realmente aprazível. Contemplar a vida e as pessoas. E aproveitar o tempo e o êxtase contemplativo e escarafunchar a alma, cartografar os mais recônditos vales e despenhadeiros e mapear os intrínsecos labirintos da alma, parecia uma boa pedida. Introspecção e viagem sentimental em busca de si mesmo. - Há algo mais estranho do que uma relojoaria repleta de relógios parados, marcando horas e minutos e segundos diversos, diferentes? Caminhei pela calçada, rumo ao meu mundo, à minha realidade, absorto na sensação de individualidade e pertencimento à vida das pessoas. Afinal, algo incompreensível era sentido e constatável: alguma coisa, um liame misterioso, unia-me à figura deprimente que jazia encostada à parede da loja: uma mulher pedinte, esfarrapada e largada na calçada, a esmolar, e não era só uma ligação ocasional resultante das poucas palavras que trocamos, eu e a mendiga, ou das míseras moedas que depus nas mãos sujas e encardidas da andarilha. Era algo mais, muito maior, de enigmática complexidade e obscuridade. Passados poucos fôlegos, terei me distanciado daquela pessoa em andrajos, o suficiente para livrar-me do incômodo de sentir-me responsável por aquela vida largada à calçada. Em direção ao instante seguinte, taciturno, segui! Ívor Barretti. escritor