quarta-feira, 6 de novembro de 2013

O canto da sereia O viajante, assim como eu, sempre retornava àquela casa. No começo de suas visitas, esparsas e breves, procurava pelo morador do casarão. Eu, de meu lado, gostava de perambular pelos arredores do casarão, e descansar na varanda. Às vezes, entrava. Sentava-me na cadeira de banco, de madeira nobre, lisa e lustrosa, à janela. A janela para o mar ficava no lado leste da casa. Janela ampla de largura, erguida a um metro e meio do piso de um salão do andar superior do casarão; salão amplo, semi-arejado, pouco mobiliado, provido de uma única porta que conduzia ao interior da casa. A janela dava para a amplitude do horizonte até onde os olhos podiam enxergar. Da janela podia-se ver ao longe, muito longe, e perder a vista na imensidão verde-azulada do oceano. O sol parecia emergir dos confins de água. Um espetáculo gigantesco, de indescritível beleza: do horizonte distante de água esverdeada, erguer-se a enorme bola no início rósea, depois tingida de vermelho-amarelada, precedida de clarões e luzes muito coloridos, profusão de cores: vermelho, amarelo, violeta, lilases, verdes. A aurora de róseos dedos que surge esplendorosa. Uma vista maravilhosa. Impossível não se deixar contagiar por misterioso e intenso encantamento: o nascer do dia visto daquela janela. Descrição de gravura e imagem admiravelmente belas. Ao longe, até onde se podia ver, as águas e o firmamento pareciam se encontrar num ponto. Nesse ponto de encontro do céu e mar é que surgiam primeiro os clarões dos róseos dedos da manhã madrugadora, em seguida, o sol, enorme. O amanhecer. Milagre mágico composto de simplicidade e complexidade. Evento universal, fenomenal, que interfere em tudo e todos. Entra o dia, sai a noite. Coisa de déjà-vu. Tão acostumados estamos com a repetição desse evento único e estrondoso que nem nos damos conta que o nascer do dia é a Terra, o planeta, completando uma volta na sua rotação constante, ininterrupta, cadenciada e perfeita. É a Terra a girar desde... desde sempre... até quando! Assistimos ao esse espetáculo imponente sem notarmos a grandeza, o mistério, a magia desse fenômeno. O anoitecer é a mesma coisa, entretanto, a magia, o vislumbre e o encantamento, fazem a diferença. A janela ficava a pouco menos de cem metros da beira do morro, recuando como se por medo de despencar da escarpa íngreme de 500 metros de altura. As ondas quebravam barulhentas naquelas pedras. Quando mais fortes e violentas, as ondas produziam brumas orvalhadas e nuvem de partículas de água gelada subia encosta acima para se dissipar a meio do caminho. O morro descia pelo oeste e sul da casa, num declive suave e longo, espraiado numa ravina e logo mais a pouca distância, num pequeno bosque. Eram os fundos e quintais da casa. Ao norte, a alguns quilômetros, a escarpa continuava acentuada, onde o morro contorcia-se numa curva e voltava-se para o interior numa descida branda onde o solo, farto de capim e relva, ostentava saliências rochosas esparsas e irregulares em tamanho e volume. Uma porta do casarão dava para o norte. As outras, todas, para o vale, para o lado oposto do mar e do precipício. Alguns metros adiante da frente da porta, do gramado e no meio do capim, uma parede grossa erguia-se em exibição e amostragem deliberada. Uma parede de dois metros de altura, de pedra lisa, lavrada, lapidada, retilínea, lembrando uma lousa, um quadro-negro. A parede ostentava inscrições gravadas à moda dos oráculos antigos: “Você é feliz? Eu sou feliz!”; “Aproveita o dia!”; “Lembra-te homem que morrerás um dia!”; “A liberdade do homem existe em sua consciência, somente.” “Eu sou eu e minhas circunstâncias.” Essas inscrições estavam à esquerda de quem olhasse para a pedra. Do lado direito, uma única inscrição: “Conhece-te a ti mesmo!” As inscrições estavam gravadas nos dois lados da parede de pedra. Esculpidas com esmero e cuidado e carinho. Eram as inscrições mais lembretes do que advertências; mais apelos e convites, menos normas determinantes, limítrofes. - Toda vez que meus olhos percorrem aquelas letras, questiono a mi mesmo: - Conhecer-ser! Nada mais insólito, difícil, árduo. Perscrutar a própria alma é tarefa assustadora. É preciso traçar mapas dos labirintos, iluminar grutas... para não se perder na imensidão obscura, no lado negro da mente... O casarão era habitado, certamente. Mas, nenhum esforço para observar o habitante era suficiente para o sucesso da empreitada. O habitante-morador era um desconhecido, um estranho, um recluso. Ninguém se atrevia a bater à porta e se convidar ao ingresso. Ninguém se interessava à visitação. O habitante-morador não se expunha, e, portanto, também não proibia a visita ou a aproximação. Aguardava ser visitado, contudo, nada fazia para dar a entender o seu querer, a sua intenção, a sua disposição. Vivia a sua vida, solitária e reclusa. Lá estava ele, na varanda, observando o crepúsculo. Nas manhãs, assistia à janela o dia amanhecer. E assim ia vivendo, displicentemente. - O que ele espera? Do que ele vive? Eu te pergunto, quero saber! - Ele? Apenas vive... Espera você bater à porta e pedir entrada. - E porque ele não me convida? Não me convence a entrar? - Ele fica a esperar por tua iniciativa, por tua disposição, teus passos em direção à mansão. Ele não te convida explicitamente para não te forçar ou convencer. A vontade deve ser isenta de influência alheia. O teu caminho só pode ser percorrido por teus próprios passos. - Não sei. Vou esperar uma oportunidade propícia, aí me reporto ao morador e me mostro. Observaram o casarão por um longo tempo. Imaginaram ambos, à janela, verem o mar. O silêncio cobriu com seu manto escuro os homens, emudecendo palavras e pensamentos. O viajante chegou por ali levado pela curiosidade, por ouvir dizerem estórias e boatos de situações mágicas e misteriosas que aconteciam espontaneamente por aquelas aragens ao redor do casarão. As pessoas vinham, buscavam ver, e quase sempre retornavam ao caminho anterior sem nada encontrarem e ou presenciarem de miraculoso, inexplicável, misterioso. O homem tem propensão ao mistério, à complexidade, ao indescritível. A simplicidade não atrai olhares. O viajante nunca se encontrou com o morador do casarão, mas... também nunca se dispôs a construir pontes sobre o desfiladeiro, a romper um abismo abissal que separa alma-coração-mente, um abismo menor somente ao que separa as pessoas, onde, no fundo, um vale sombrio produz cardos e espinhos perfurantes, lacerantes, altamente lesantes e nocivos. Um dia surgiu do mar um navegante. Trazia no rosto e na pele as marcas e cicatrizes que o longo tempo no oceano entalha a sal, mormaço, queimaduras. E por ali ficou, absorto em suas próprias memórias e lembranças, olhar ataviado sempre perdido em direção ao mar. Olhava sempre o longe e distante horizonte. E seu olhar lacrimejante parecia implorar um surgimento, um aparecimento, um novo porvir. Demorou muito tempo a desatar a voz e soltar as palavras presas no coração. E quando abriu a boca e o som da voz escapuliu como uma torrente de água agitada, contou-nos estórias de seus sonhos e vertigens e miragens e devaneios. Todavia, era a estória de uma vida... Eu ouvi a estória, atentamente. Certa tarde, o crepúsculo apagava mansamente as luzes do dia e cobria o mar com lençol azul-anil de estrelas brilhantes e um luar amarelo intenso de uma enorme lua cheia, arredondada e imensa. Foi nessa noite encantada e mística que ele viu e ouviu a sereia. E, ao vê-la, foi encantado por seu canto. A sereia cantou ao navegante. E o navegante, hipnotizado e enfeitiçado, nunca mais deixou de ouvir a melodia cantada pela sereia. A música invadiu a alma e a mente e o coração do navegante. Encantado, apaixonou-se pela sereia. Ocorreu que a sereia, por seu turno, e como era de seu feitio, também se enamorou. E viveu a sereia, e o navegante, um tórrido romance de amor e paixão. E o amor durou o que durou... o tempo que dura um amor, uma eternidade... uma brevidade duradoura... um instante para sempre. Um dia a sereia sumiu... mergulhou no mar e não mais retornou à superfície. E o navegante chorou! E desde então, ouve, em sua cabeça, o canto da sereia, e fica a olhar o mar, para ver, no fim do horizonte, a silhueta da sereia. Ouvi a estória, e soube de outra verdade, desconhecida do navegante. A sereia, ao encantar, que é sua natureza, também se encanta e se aprisiona à figura que encantou, e se prende àquele, ata-se ao amado e se deixa exaurir na monoplegia do coração. Até que, exaurida, num momento de delírio, foge, quebra os grilhões que a retém, e abandona o amor encantado ao léu, à própria sorte, assim ela, escrava de si mesma e da própria natureza, sofre o mesmo feitiço e o mesmo padecer. Ao entoar seu canto, na primeira vista, a sereia provoca maremotos e tsunamis, ondas gigantescas assolam as praias do continente, porém, a ilha em que a sereia habita, também é devastada e varrida pelas ondas, e se transforma num promontório desértico r rochoso. Às vezes, a própria sereia é arremessada de encontro aos paredões onde as ondas fortes e espumantes se quebram, barulhentamente. E quando isso acontece, refugia-se ferida, quase mortas, nas cavernas escuras ao pé do morro. O navegante não sabe disso, se souber ele que a sereia também sofre, sofrerá ele duplamente. Ou não! Talvez... o saber do sofrimento alheio é resfôlego, alívio e abrandamento da revolta e da autocomiseração, quando falta empatia e resiliência. É preciso ser navegante dos sete mares para sorrir ao infortúnio e suportar o canto da sereia sem o aprisionamento fatal que fere de morte o coração dos enamorados. Melhor ouvir os pássaros e o vento! Ívor Barretti. escritor