domingo, 30 de junho de 2013

 O labirinto e o viajante...
  
As batidas na porta romperam o silêncio que se estendia já há algumas horas.
Batidas cadenciadas, pausadas e rítmicas, a pedirem atenção e obséquio.
Larguei a caneca de café ainda fumegante sobre a mesa, e contrariado, dirigi-me à porta.
- É estranho como a importunação é inoportuna! Pensei.  Quando quero e desejo quietude e mudez o telefone não pára de chamar, a campainha toca insistentemente, e tudo são barulho e som e importunação e contrariedade. Quando sinto falta da presença ou voz de alguém, qualquer um, ninguém fala, ninguém vem, ninguém liga, procura ou dá notícia. Quando busco introspecção encontro sons e vozes e algazarra; quero música e nem o vento sibila; nada soa, ressoa, ecoa, nem os cachorros ladram pela rua.
As batidas intercalavam compassadamente.
Abri a porta com cuidado tal a denunciar contragosto e mau humor.
Olhei a figura bizarra, ali estática, imóvel, de pé, na calçada.
Parecia querer demonstrar enfaticamente a precariedade notória do seu ser. Magro, esquelético, mal vestido, feio, expondo aos olhos carência e fome e desprezo.
Ancorei meus ossos no umbral da porta e pus-se a observar a figura exótica daquele indivíduo, personagem saltada de um gibi de terror, um sujeito sem prumo. Fosse noite escura, chuvosa, de trovoadas e relâmpagos, aquela pessoa pareceria  assombração.
Sem mais nem menos, sem preâmbulo ou indagação, interpelação ou apresentação, o indivíduo olhou-me e abriu a boca.
- Preciso do mapa da minha alma! Disse.
- Como? Retruquei.
- Preciso do mapa da minha alma. O mapa me mostrará por onde devo seguir, para onde ir.
Estarreci! E continuei ouvindo.
- Preciso do mapa da minha alma para saber onde estou.
- Minha cabeça é vazia... não tenho neurônios... É tudo oco... Aí, quando eu penso me transporto... vou para outros lugares, outros mundos, que nem conheço... por isso, preciso do mapa de minha alma.
- Nunca sei se estou aqui ou lá... quando eu tiver o mapa de minha alma então me encontro...
Sorri, sem desdém.
Indaguei ao sujeito como poderia ajudá-lo, enquanto pensava comigo mesmo: - quem é o louco, ou quem é mais louco? Afinal, quem não é louco?
- Que louco engraçado esse. Tudo o que quer é o mapa da alma. Explorar-se, interiorizar-se, conhecer-se, desnudar-se.
Muito interessante.
- Onde pretende achar o mapa da tua alma? Perguntei-lhe.
- Não sei. Se soubesse não estaria procurando nem precisando, ia buscar e pegava. Respondeu-me ele, rindo.
- Tem lógica, pensei.
Pediu-me pão e roupas.
Dei-lhe, e ele seguiu seu caminho.
Certamente continuará precisando do mapa de sua alma.
E terá consciência disso, apesar de toda a loucura.
Olhando o homem caminhar pela calçada, refleti: - E nós? Nós nos achamos e nos colocamos como bússola de muitos e dos outros; mas como aquele louco, também nós não temos o mapa de nossa alma.
Mera ilusão é a certeza que se têm da vida. Tudo na vida é frágil e tênue e passageiro. Ora é ilusão, apreensão, sensação, emoção; noutra ocasião já é recordação, estímulo, ordenação, coordenação.  
Muitas vezes, nem mapa temos. O louco, ao menos, segundo ele próprio dissera, já havia desbravado as terras longínquas da alma, e depois da aventura cartográfica, traçado e desenhado um mapa.
Perdera o mapa, é certo, mas, já tinha a consciência territorial do próprio ser, suas confrontações, limites e fronteiras.
Precisava do mapa para não ultrapassar as fronteiras e os limites.
Tomara realmente ele encontre o mapa da própria alma, e se encontre, transfigure-se; se transforme de homem-zumbi em homem-pessoa.
O homem sumiu na distância, pela rua.
Entrei.
Fechei a porta atrás de mim.
Ri... ria muito... divertidamente... dele... da loucura, da insignificância, e de minha própria ignorância!
Ívor Barretti.
   escritor              

domingo, 23 de junho de 2013



O GARIMPEIRO... A JÓIA... A FLOR...
  
- A jóia é apenas uma pedra que foi valorada acima da média e das outras pedras... dizia o garimpeiro enquanto golpeava a rocha com sua picareta curta, pontuda e dura.
- Mas... quem valorou a jóia?... quem a dotou de qualidade, preciosidade, valoração? A natureza? O acaso? O acaso... sim,  talvez! Porque nem todo carvão vira diamante! Ou a própria jóia, por sua própria essência e raridade? O tempo? Ou unicamente o homem, e sua vaidade, orgulho, ostentação, ambição, enfim, o homem e suas virtudes e defeitos?  
- Ou tão só a escassez;  por ser escassa e não abundante como as outras pedras? É por causa de seu brilho e reluzência? Ou porque as outras pedras, comuns e iguais e abundantes, são opacas, sem brilho, sem fulgor? Cintilação?
Dizia essas coisas o garimpeiro à sua alma, enquanto maltratava a rocha, no escuro, no mais profundo buraco escavado ao pé do morro.
A picareta agredia a montanha, rasgava as entranhas da terra.
O mineiro resolveu, depois de muito cansaço e suor, abandonar o garimpo.
Voltou à superfície.
Demorou a acostumar-se com a luz.
O sol, e seu brilho, feriam-lhe os olhos.
Custou a enxergar, com olhos abertos, o sol, o dia, o brilho e a luz, os montes, as árvores, os pássaros, os vales, as flores, as cores.
Só conhecia a escuridão da caverna, e quando saia do buraco fundo, já era noite; e mesmo quando clara por conta da lua, a noite ainda é escura, é sombra; mulher travessa que se finge menina e se cobre toda com manto de estrelas e luar para não ver, ciumenta, a luz do dia.
Depois que os olhos aprenderam a ver e enxergar o dia, e a luz, e as cores, e as flores, e as árvores, e os montes, e os vales, e os rios, e os mares; fez-se jardineiro.
Plantou flores!
Canteiros de flores e jardins.
E a flor, apesar de perene e passageira, frágil e delicada, agradava mais ao viajante que a gema rara.
Nenhum viajante visitava a mina. Raramente algum curioso desavisado entrava na gruta para vasculhar cascalhos atrás de uma jóia esquecida. Ilusão de criança: ganhar presentes, ilusão de adulto: ganhar prêmios e sorteios; vencer o jogo.
A maioria dos viajantes se detinha nos canteiros do jardim.
Os jardins floridos enfeitavam a montanha. O morro ganhara vida.
Árvores brotaram. Os frutos atraíram pássaros e animais e vida.
O tempo fez o jardineiro esquecer-se das agruras da mina, O morro, agora belo e imponente, perdera a imagem de opressão e dor.
O cinzento e negro deu lugar a cores vivas.
- As flores voam no morro! Dizia o jardineiro, referindo-se às nuvens de borboletas coloridas que esvoaçavam pelo ar.

Ívor Barretti.
   escritor