domingo, 4 de agosto de 2013

O relógio e o tempo... Ao entrar naquela relojoaria, tive a impressão de retroceder aos anos 20, e me alegrei com a sensação de viagem ao antigo, ao passado. Balcão de madeira, antigo, velho, surrado, denotando anos e décadas de trabalho, de uso e de prestatividade servível, enegrecido; ainda resistente e durável. As prateleiras eram iguais o balcão, antigas, e forte madeira enegrecida, rija, contrastando com os cristais e vidros e uma infinidade de objetos expostos. Estavam as prateleiras repletas de relógios. Relógios de vários tipos, modelos, cores, padrão. Relógios antigos, novos, usados, sem uso, uma quase centena de relógios. E cada um deles mostrava um horário diferente. Estavam todos parados. Pararam o funcionamento em horas diversas. Nenhum relógio repetia a hora ou minuto de outro. Nenhum marcava o mesmo tempo, a mesma hora, o minuto e segundo. Nenhum desses relógios funciona, todavia, todos marcam o tempo certo de algum lugar do mundo. Todos estão, pois, certos, embora errados. O certo e o errado dos relógios correspondem ao conceito do observador. Cada relógio parado está a marcar, naquele exato momento, a hora certa em algum determinado fuso horário, de alguma parte do mundo. E, mesmo aqui, no meu tempo, os relógios parados marcam cada um deles, um momento do dia, e nesse momento, cada relógio está certo com a hora presente ou passada. Mas, esse acerto ocasional e inapropriado, também depende dos olhos do observador, também está na resolução conceitual de quem olha os relógios. Certo e errado é, no caso, questão de ponto de vista, e nada tem a ver com o conceito de certo e errado no campo da moral e da ética. Até porque o certo e errado da moral e da ética não se vincula aos olhares do observador transeunte, mas de um consenso geral, cultural, coletivo. O certo e errado dos relógios da vitrine e das prateleiras não é um conceito dualista, mas apenas o olho do visitante. Pensei no quanto o tempo pode ser tirano quando ignorado, repudiado, menosprezado. Cabe ao tempo impor bengala e chapéu. O escoar afunilado e estreito das areias da ampulheta é o mesmo por onde se esvai a presteza e desenvoltura física. A jovialidade é sensação, emoção, portanto, é qualidade da alma. O tempo se resume, então, a um acidente ou incidente físico-espacial-dimensional. Nenhum relógio ali, naquela relojoaria, estava certo. Nenhuma marcava a minha hora, marcava outras horas, a horas de qualquer um, menos a minha e a do relojoeiro. Gostamos tanto de marcar e cronometrar o tempo... E não nos damos conta de viver o tempo. Paguei ao relojoeiro. Apanhei meu relógio e sai. Deparei com o vai-e-vem das pessoas, apressadas, envolvidas em mil e um e tantos motivos e assuntos pessoais, individuais, íntimos. O dia ensolarado, agradável e fresco, exibia um céu azul e convidava à contemplação. Sentar à calçada, ao lado de uma mesa de bar, vendo as pessoas irem e virem como formigas num formigueiro, era algo realmente aprazível. Contemplar a vida e as pessoas. E aproveitar o tempo e o êxtase contemplativo e escarafunchar a alma, cartografar os mais recônditos vales e despenhadeiros e mapear os intrínsecos labirintos da alma, parecia uma boa pedida. Introspecção e viagem sentimental em busca de si mesmo. - Há algo mais estranho do que uma relojoaria repleta de relógios parados, marcando horas e minutos e segundos diversos, diferentes? Caminhei pela calçada, rumo ao meu mundo, à minha realidade, absorto na sensação de individualidade e pertencimento à vida das pessoas. Afinal, algo incompreensível era sentido e constatável: alguma coisa, um liame misterioso, unia-me à figura deprimente que jazia encostada à parede da loja: uma mulher pedinte, esfarrapada e largada na calçada, a esmolar, e não era só uma ligação ocasional resultante das poucas palavras que trocamos, eu e a mendiga, ou das míseras moedas que depus nas mãos sujas e encardidas da andarilha. Era algo mais, muito maior, de enigmática complexidade e obscuridade. Passados poucos fôlegos, terei me distanciado daquela pessoa em andrajos, o suficiente para livrar-me do incômodo de sentir-me responsável por aquela vida largada à calçada. Em direção ao instante seguinte, taciturno, segui! Ívor Barretti. escritor

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